quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

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A nossa conceituação tanto para práticas chamadas culturais, quanto para as artístico-culturais tem como embasamento os postulados teóricos de Certeau (2003, p. 143). Segundo ele as primeiras ligam-se a “[...] ação pela qual cada um marca aquilo que outros lhe dão para viver e pensar [...]” ou ainda “[...] o modo como um grupo se constitui, toma consciência de si e torna-se sujeito de sua própria história” (Certeau, 2003, p.247). Em nossas leituras percebemos que as últimas, por outro lado, estão ligadas as primeiras, pois podemos afirmar que quando estas ações são realizadas através das linguagens artísticas podemos concebê-las como práticas artístico-culturais.


2 . Estruturando o cenário: O ensino de arte e as práticas artístico-culturais na EJA


A cultura é uma noite escura em que dormem as revoluções de há pouco, invisíveis, encerradas nas práticas -, mas pirilampos, e por vezes grandes pássaros noturnos, atravessam-na; aparecimentos e criações que delineiam a chance de um outro dia.
(Certeau)



    A obrigatoriedade do Ensino de Arte nos diversos anos da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos abriu espaço para diversas interpretações, principalmente no que se refere à Educação de Jovens e Adultos. Ao fazer uma adaptação de uma proposta didática realizada para alunos do chamado “ensino regular”, alguns profissionais da área, em sua grande parte, desenvolveram práticas pedagógicas que não valorizavam as experiências e os conhecimentos prévios dos educandos, desconsiderando, na maioria das vezes, o vínculo entre educação, trabalho e práticas sociais e culturais.
    O que poderia ser compreendido por desenvolvimento cultural? Uma sociedade em que
 Coloca-se o peso da cultura sobre uma categoria minoritária de criações e de práticas sociais, em detrimento de outras [...]”  Segundo a qual “[...] campos inteiros da experiência encontram-se [...] desprovidos de pontos de referência que lhes permitiriam conferir uma significação às suas condutas, às suas invenções, à sua criatividade” (CERTEAU, 2003, p. 142)

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Daí decorre um equívoco de considerar alguns conhecimentos mais importantes em detrimento de outros, privilegiando certos conteúdos e práticas. Construindo processos de aprendizagens que discriminam sujeitos e culturas, atribuindo-lhes ou negando-lhes valores, segundo a visão da cultura dominante. Sobre o tema, continua o autor ao indagar: “Que grupo tem o direito de definir, em lugar dos outros, aquilo que deve ser significativo para eles? [...] Não há um setor particular na sociedade onde se possa fornecer a todos os outros aquilo que os proverá de significação” (CERTEAU, 2003, p. 142).
O que se consegue é aprofundar o distanciamento entre arte-escola/arte-vida. E nas carteiras das salas de aulas o aluno entra em contato com uma arte que não faz parte de sua vivência, sendo considerada, muitas vezes, como a única e legítima. Porém, na escola da vida, percebe outras formas de fazer artísticos em suas comunidades, fazer dos quais também participa. Silenciar estas práticas, desconsiderando-as é negar-lhe o direito a identidade social e cultural. Como salienta Freire (2006, p. 81): “[...] não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo”.  
Segundo Arroyo (2005), assim como é fundamental introduzir conteúdos das diversas culturas e épocas, é também necessário considerar a especificidade desses tempos de vida – juventude e vida adulta – e da especificidade dos sujeitos concretos históricos que vivenciam esses tempos, contribuindo com elementos para reconfiguração da Educação de Jovens e Adultos de maneira a fugir dessa formatação supletiva, preventiva e moralizante para partir rumo a uma visão de sujeitos de direitos e deveres do Estado.
    Para esta discussão destacamos a afirmação de Oliveira (2002, p. 43) quando ela diz que “muitos são os mecanismos que, ao definirem quem é, porque é e como é que se deve ser cidadão, excluem todos aqueles que não preenchem tais requisitos”. Assim sendo, ao se vincular à escolaridade como um pré-requisito ao exercício da cidadania, intensifica-se o discurso de convencimento aos excluídos desta “cidadania” por tal razão, criando-se um “mecanismo de usurpação dos direitos que repousa sobre a desqualificação do indivíduo enquanto tal” (OLIVEIRA, 2002, p. 42), alimentando-se uma irresponsabilidade para dela se beneficiar.
    Sendo a cidadania concebida em relação aos direitos e deveres do cidadão a um Estado, e vice-versa, supõe uma utópica igualdade entre todos. Igualdade que nega as relações sociais de dominação a que grupos são submetidos, como também o direito à diferença. Santos apud Oliveira (2002, p. 47 ) aponta, em outras palavras, que a cidadania e seu exercício não é uma relação entre cidadãos e Estado apenas, mas diz respeito também a “todas as formas de interação social nas quais estamos inseridos”.

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    Na defesa do desenvolvimento de uma concepção mais multicultural e democrática de cidadania, Oliveira (2002, p.51) aborda a questão das formas de tratamento da igualdade e da diferença, afirmando: “A igualdade pretendida é a de possibilidades de se escolher um caminho de vida próprio, de poder ser respeitado em qualquer alternativa, de acordo com as próprias aptidões, desejos e valores”, igualdade que inclui o direito à diferença.
    A escola, como campo privilegiado de encontros multiculturais, é por isso mesmo, também um espaço de tensão entre a legitimação da dominação e sua superação.
    O tratamento dispensado às diferenças e às igualdades na prática pedagógica, portanto, deve concorrer para o desenvolvimento de formas de relacionamento multiculturais mais democráticas e igualitárias, ampliando as possibilidades de exercícios da cidadania nesse contexto. Nesse sentido, a citação de Santos apud Oliveira (2002, p. 53) complementa: “[...] temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza [...]”.
    Algumas ações se tornam, portanto, indispensáveis para que o ensino e a aprendizagem de Arte realmente se concretize na Educação de Jovens e Adultos, de forma a acolher a diversidade do repertório cultural que o aluno traz para a escola. Como afirmam Oliveira e Sgarbi (2002, p. 39) “[...] em contextos multiculturais, grande parte da nossa identidade é tecida em oposição às identidades e formas de estar no mundo de outros grupos sociais. E é desse modo que aprendemos a nos inserir no mundo; diferenciando-nos dos ‘outros’ ”.
    E para que tais ações indispensáveis à concretização significativa do Ensino de Arte se efetivem, defendemos que se fazem necessárias alternativas que possibilitem a realização de trabalhos como os propostos nessa pesquisa, ou seja, que realmente se voltem, em sua prática de ensino-aprendizagem, para o repertório do público-alvo as quais se destinam.
    À luz das proposições teóricas do historiador Michel de Certeau e das formulações sobre a Educação de Jovens e Adultos difundidas pelo educador Paulo Freire procuramos desenvolver a pesquisa.
    Investigar nos convida a refletir sobre o sentido dos fenômenos das ações. Segundo Ferreira (2000, p. 531) pesquisar é uma “investigação e estudo minuciosos e sistemáticos, com o fim de descobrir fatos relativos a um campo do conhecimento. Uma busca com diligência”. Essa busca então começa dentro de nós, quando nas inquietações em razão ao não percebido totalmente, mas, parcialmente se dá a conhecer. “Os por quês” que se colocam em nossa prática pedagógica e, no entanto não se dão a desvelar suas respostas

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    Partindo então para definir os motivos dessa busca nos encontramos com Freire (2006, p. 29) que afirma: “Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”.
    No percurso de pesquisar as práticas culturais nos detivemos a ponderar sobre estes vocábulos separadamente - prática e cultura. Conforme Ferreira (2000, p. 550), a prática diz respeito ao “uso, exercício, rotina, saber provido da experiência”. Freire (1977, p. 43), ao discursar sobre cultura, defende:

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade, vai humanizando-a, vai acrescentando a ela algo que ele mesmo é fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura.

    Dessa forma, investigar as práticas culturais do aluno significa configurá-lo na condição ontológica de ser sujeito e perceber a complexidade dessas práticas e suas contribuições ao ensino de Arte na Educação de Jovens e Adultos.
    Essa discussão apresenta-se em torno das formas e maneiras de apreciar, conhecer e do fazer artístico a partir das produções das linguagens artísticas que evidenciem práticas culturalmente construídas, tendo por ato de produzir a realização por meio da experimentação.
    Partindo das experiências de arte vividas pelos alunos em suas comunidades, procuramos compreender as formas como se vêm, sentem e explicam o seu mundo, trazendo contribuições para o processo de ensino-aprendizagem; pois segundo Freire (2006, p. 63) “[...] não é possível à escola, se, na verdade, engajada na formação de educandos educadores, alhear-se das condições sociais culturais, econômicas de seus alunos, de suas famílias, de seus vizinhos”.
    O diálogo com os autores Michel de Certeau e Paulo Freire, nesse trabalho, possibilitou a construção de uma reflexão teórica e prática por meio dos instrumentos idealizados para execução da prática pedagógica, nossa ação docente e a ação cultural entre os sujeitos e seus espaços.
    Essa interlocução se fez possível devido ao conjunto das proposições articuladas por Certeau (2003) e nas formulações de Paulo Freire acerca da Educação de Jovens e Adultos, tornando importante à conversação entre esses autores e fundamentando as relações existentes entre Educação e Cultura.

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 3. Apreciando e considerando as artes de ser e fazer dos alunos da EJA: Encaminhamentos finais

O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada.
 (Certeau )


No curso dessa pesquisa, as categorias obtidas a partir da análise dos dados coletados, foram relacionados às práticas artístico-culturais que: 1. estão presentes nas comunidades atendidas; 2. são vivenciadas pelos alunos como integrantes; e 3. se fazem presentes na escola. Chegamos assim aos dados abaixo apresentados:


3.1 . Práticas artístico-culturais presentes nas comunidades atendidas

GRÁFICO 01



A partir do gráfico 1 podemos observar a presença significativa de práticas artístico-culturais nas comunidades atendidas, sendo a Capoeira, com  34%, e o Hip hop com 23%, as mais citadas pelos alunos. Em contraposição, as demais não chegaram a atingir, individualmente, o índice de 10% das citações, totalizando juntas 43%, referindo-se 2% desse total a afirmação a não existência de tais práticas nas comunidades.

3.2 . Práticas artístico-culturais vienciadas pelos alunos  como integrantes



 GRÁFICO 02




Quanto à categoria das práticas artístico-culturais vivenciadas pelos alunos como integrantes, podemos observar no gráfico 2, que apenas 24% dos alunos afirmaram participar em alguma manifestação desse tipo. A grande maioria, 76%, afirmou não participar de nenhuma dessas práticas.


3.3 . Práticas artístico-culturais presentes na escola


GRÁFICO 03
  

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No tocante as práticas artístico-culturais que se fazem presentes na escola, podemos observar no gráfico 3, que as direcionadas ao público jovem foram as mais destacadas pelos alunos, como a Capoeira, com 38% das citações, e o Hip hop com 29%. Constatamos também que algumas das práticas artístico-culturais exercidas pelos alunos, como o Pastoril, o Boi de Reis e a Praieira, informação contida no gráfico 2, não foram  citados nesse ítem.
O entrecruzamento dos dados nos fez perceber que, apesar de um número mínimo de alunos (2%) ter afirmado a “não existência” de  práticas artístico-culturais em suas comunidades, a grande maioria(76%) desses não é alcançado por essas práticas,demonstrando não vivenciá-las ou “desconhecê-las”.
Desse modo, fica visível a imposição do pensamento de um grupo dominante que exclui a legitimação de outras culturas, impedindo a possibilidade de se fazer plural. Sobre  o tema aborda Certeau ( 2003, p.167 ):


[...] e, não tendo outro meio de se avaliarem senão conforme o critério único imposto pela escola (mas também pela família, pelo meio), eles se marginalizam a si mesmos, tornando-se esses “auto-degradados” de que fala Pierre Bourdieu, finalmente cúmplices, apesar de si próprios, do sistema que tende a perpetuar as relações de força existentes.



Na continuidade do estudo dos dados constatamos que as práticas artístico-culturais mais presentes nas comunidades e na escola são a Capoeira e o Hip Hop.                                      A Capoeira é uma manifestação da cultura afro-brasileira que, assim como o Hip Hop, apresenta em sua história, um caráter “desviacionista” citado por Certeau (1994) compreendido em relação às formas como os sujeitos utilizam as regras que lhes são impostas e as quais não têm como fugir, mas sem negá-las,inserem, numa espécie de bricolagem, seus costumes, valores e crenças pois  “ a fraqueza em meios de informação, em bens financeiros e ‘seguranças’ de todo o  tipo exige um acréscimo de astúcia, de sonho ou de senso de humor” (CERTEAU, 1994, p.44).
Nesse sentido, as noções desenvolvidas por Certeau (1994) sobre estratégias e táticas, nos permitem uma melhor compreensão dessas práticas em seus contextos histórico-cultural:


Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder [...] pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças. [...] Chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio [...]. A tática não tem por lugar senão o do outro.E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha [...] é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’, como dizia Von Bullow, e no espaço por ele controlado [...] Em suma, a tática é a arte do fraco (CERTEAU, 1994, p. 99, 100, 101).

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Tendo a Capoeira e o Hip Hop surgido no Brasil como formas de resistência, apresentam-se como práticas de tática. Um grupo social na situação de opressão a que está submetido percebe-se impedido de exercer os seus saberes, crenças e hábitos culturais. E neste contexto de opressão, no campo do inimigo, do próprio instituído por uma sociedade escravocrata e capitalista (lugares de onde administram seu poderio opressor), desenvolve maneiras de desvencilharem-se da ordem imposta, mas sem poder escapar-lhe totalmente.
Com referência ao texto de Galvão (2001), a palavra Capoeira, afirmam alguns etnólogos, é originária do tupi-guarani, significando “caa” - mato e “pueira” - que foi mato”, não por acaso lugar para onde o negro escravo fugia.
O estudo supracitado discorrendo sobre a origem da Capoeira, afirma que a maior parte dos estudiosos do assunto, defende que sua origem se deu no Brasil pelos negros bantos naturais de Angola, no período de 1600. Como argumento esses estudiosos apontam a não existência de lutas semelhantes nas ex-colônias do continente americano.
Praticada inicialmente apenas pelos negros escravizados nas senzalas e quilombos, a ascensão da Capoeira se dá na metade do século XIX, quando deixa a exclusividade das senzalas e passa para os centros urbanos como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Desta forma, amplia a presença de sua prática não só entre os negros e pobres como entre os brancos, dando início a atitudes de perseguição e opressão chegando a ser associada à criminalidade no código penal de 1890. Ações estas “[...] que, graças ao postulado de um lugar de poder(a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos(sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem”(CERTEAU,1994,p.102).
A Capoeira só saiu da ilegalidade (GALVÃO, 2001) na década de 1930, dando início a alterações relevantes como a criação de duas modalidades: a de Angola e a Regional. A primeira considerada Capoeira-mãe, ligada a Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981), o mestre Pastinha, preserva a tradição desta luta, suas características originais como a mandinga, a improvisação, a movimentação lenta e rasteira. A Capoeira Regional, criada por Manoel dos Reis Machado (1900-1974), o mestre Bimba, tem raízes na modalidade de Angola diferenciando-se desta por pretender o desenvolvimento de movimentos mais ágeis e orientar-se, fundamentalmente, para o combate e para a luta, incorporando técnicas de lutas como o jiu-jitsu e o boxe.

MEG, A MINHOCA FELIZ!

                             Trabalho de "Stop Motion" realizado com os alunos do 2º ano da E.M.                              Z...